A mexicana Claudia Carolina González Mendoza é missionária católica, antropóloga sociocultural, com trabalho de campo sobre migração e identidade nas comunidades originárias de Bolívia, Aymaras y Chiquitanos. Atua como colaboradora das Escolas de Perdão e Reconciliação no México e é voluntária na Pastoral Carcerária desde 2014, dando cursos de Justiça Restaurativa e oficinas de ESPERE.
CDHEP: Como você conheceu a Justiça Restaurativa e o que mudou em você após conhecê-la?
Claudia: Uma das áreas da antropologia que tem chamado minha atenção é a antropologia jurídica. Daí meu interesse pelas formas como os grupos culturais, especificamente os indígenas originários, constroem suas normas de regular a sociedade para construir justiça, em oposição à ordem jurídica positivista. Retomar a contribuição destes grupos culturais baseada numa justiça que restaura a pessoa e a integra novamente à comunidade me pareceu uma contribuição importante para a construção da sociedade.
Conheci a proposta da Justiça Restaurativa aplicada fora dos povos originários no Seminário sobre “Justiça Restaurativa em beneficio da sociedade e das /dos privados de liberdade” em Cochabamba, Bolívia. Foi oferecido pelas duas missionárias e doutoras, Petronella Boonen e Martina González, representantes do CDHEP de São Paulo, Brasil.
Meu primeiro impacto foi descobrir que já se trabalhava com Justiça Restaurativa e que estava dando resultados concretos em diferentes espaços, especialmente referente ao direito penal. Conheci o “Proyecto Justicia Restaurativa em Bolívia”, a primeira experiência piloto de Justiça Restaurativa com adolescentes / jovens em conflito com a lei que se encontram privados de liberdade no Centro de Reabilitação Qalauma de La Paz. Esta realidade me chegou muito próxima.
Esta experiência confirmou em mim o compromisso de colaborar nesta área, começando por tentar romper com esquemas mentais, sociais e culturais que excluem as pessoas que são acusadas por infringir a lei. Trata-se de tentar promover outro tipo de justiça que as restaura e as reintegra na sociedade para assim reconstruir a harmonia na sociedade.
Acreditar que este outro tipo de justiça é possível e implica em acreditar no ser humano, um ser humano que erra, mas que tem a possibilidade de mudar, de sentir com o outro, de transformar sua vida, sua realidade, de reparar e se restaurar. Senti a necessidade de começar por uma mudança de visão na forma de resolver as situações de violência ou de conflito a nível pessoal e social. Entendi que se solucionar a violência gerando mais violência, faz com que a sociedade se torna cada vez mais defensiva, isolando o que e quem parece perigoso. Desta forma, a sociedade se desumaniza e se desestrutura a si mesma. A proposta da JR é promover o encontro com o outro, olhá-lo respeitando sua dignidade e incluindo suas contradições humanas. Trata-se de uma atitude que favorece o responsabilizar-se para a reconstrução da harmonia social.
Não obstante, o impacto mais forte foi a nível pessoal. Voltou a despertar em mim uma situação traumática vivida por minha família quando vítima de um delito. Refleti sobre todas as consequências e sofrimentos que esta situação nos trouxe, a dor e a raiva que durante muito tempo sentimos e o desejo de que fosse feita “justiça”. Almejávamos uma justiça que implicava num castigo para o culpado. Ao mesmo tempo sentimos a frustração de que isso não acontecesse. Durante o seminário pensei que teria gostado de conhecer a Justiça Restaurativa quando minha irmã fora assassinada. Descobri que era preferível que a pessoa que lhe tirou a vida tivesse a oportunidade de se restaurar, pelo bem dela e da sociedade. Esta restauração seria ao mesmo tempo uma forma de cura e restauração de mim mesma e de minha família. Senti que encontrei respostas pessoais, mas também um caminho para seguir profissionalmente.
Após o seminário sobre JR tive a oportunidade de entrar em dois presídios, um de mulheres e outro de homens, o que transformou minha vida. Meus olhos viram os internos com um olhar novo. Eu os vi como pessoas com uma história por detrás deles que marcou suas vidas. Pessoas que erraram, mas que como todo ser humano têm a possibilidade de mudar e recriar-se. À medida que escutava suas histórias e experiências, assim como o impacto que causava neles a proposta da Justiça Restaurativa, encontrei-me comigo mesma e encontrei uma nova missão.
CDHEP: Conte-nos como tem colocado em prática os conceitos da JR?
Claudia: Regressando ao México me integrei à Pastoral Carcerária da Arquidiocese. Foi uma nova experiência, já que a realidade é muito diferente daquela que conheci na Bolívia. Foi possível abrir espaços para dar cursos e oficinas com o apoio da Subsecretária do Sistema Penitenciário. Mesmo com pouca experiência em JR, pudemos iniciar cursos sobre este tema no Centro Varonil de Readaptação Social da cidade do México, com jovens de 18 a 34 anos. Houve uma boa resposta por parte dos jovens que manifestaram nunca terem escutado sobre o tema, mas que, se tivessem a possibilidade, gostariam de fazer o processo da JR. Realizamos outras atividades com esses jovens fora do curso. Assim foi possível integrar jovens internos, de bandos opostos, sem violência o que também afetou positivamente as autoridades do Centro. Depois de algumas atividades com internos que estavam em área de pós-tratamento e castigo, tivemos uma resposta bastante positiva, pois estes não voltaram a reincidir com atos violentos. Por consequência, lhes foi permitido regressar ao convívio com os demais.
Não obstante, a pesar dos êxitos, também houve alguns desafios que surgiram por parte do sistema penitenciário. Este nem sempre se interessa pela restauração dos internos, e, desta forma, coloca travas. Assim, a continuidade do processo com este grupo foi suspenso.
No ano de 2016 tivemos a oportunidade de entrar na Penitenciária do Distrito Federal de México para oferecer uma oficina das Escolas de Perdão e Reconciliação – ESPERE. Os participantes expressaram que já tinham feito outros cursos para trabalhar sobre a violência e o perdão, mas não tinham experimentado a transformação que esta oficina lhes causou. A mesma foi dada também num dia de visita familiar, assim tivemos a oportunidade de ter contato com alguns familiares dos participantes da oficina. A esposa de um deles expressou a mudança que estava vendo em seu marido. Disse que gostaria de fazer essa oficina, pois sentia a necessidade de melhorar suas relações e conseguir o que seu marido estava conseguindo.
CDHEP: O mudou no seu trabalho, serviço missionário e/ou em sua vida particular?
Claudia: A partir destas experiências, abriu-se um novo horizonte na minha colaboração por um mundo mais humano e inclusivo. Também sinto que vou me restaurando. Me reencontrei com as pessoas que fizeram mal a minha irmã e minha família, me permitir escutar e acolher suas histórias também marcadas por dor e sofrimento foi muito restaurativo para mim. A ESPERE abriu um espaço de me redescobrir e assumir uma mudança de vida desde o perdão, o que me trouxe para minha vida mais paz e relações mais harmônicas. Por isso, a partir da JR, me sinto uma promotora da cultura do perdão e da paz.
Dentro do meu serviço missionário no México tem sido um desafio abrir caminhos para esta nova proposta. Tenho a certeza que vale a pena arriscar e buscar novas alternativas que dignificam as pessoas. Sinto que meu trabalho agora está centrado em promover uma nova forma de se ver e de ver o mundo entre as pessoas privadas de liberdade. Trata-se de possibilitar-lhes a visão de que existe realmente novas oportunidades para transformar suas vidas a partir de uma restauração e, por tanto, uma reconstrução da sociedade.
CDHEP: A partir de sua experiência e numa perspectiva de futuro, quais são as possibilidades que você vê para a Justiça Restaurativa nos presídios do México?
Claudia: Existe muita necessidade de promover esta justiça. É necessário abrir espaços para o debate, proporcionar elementos jurídicos que possam ser apropriados também pelos privados de liberdade e pelas pessoas que foram vítimas de alguma agressão. No campo jurídico fala-se de conciliação e mediação. Mas, falta um acompanhamento mais interdisciplinar que ajude a fazer o processo restaurativo como tal. Não basta ficar no encontro formal de ambas as partes sem nenhuma preparação prévia, como costuma acontecer. Diversas pessoas privadas de liberdade expressaram que encontros mal preparados, como é o caso dos juízos orais¹, muitas vezes geram mais violência.
Existe um campo amplo para desenvolver a JR. Há experiências muito positivas em comunidades indígenas e em municípios que têm como autoridade pessoas nomeadas por virtudes e costumes. Estas poderiam ser transferidas a outros âmbitos. Por exemplo, estas pessoas poderiam ser facilitadores para casos com pessoas privadas de liberdade.
Contudo, é necessário consolidar equipes que trabalhem nesta área e a promovam tanto no interior dos presídios quanto fora deles. A contribuição das ESPERE vai abrindo caminhos que, combinados com a JR, podem crescer e transformar estas realidades desumanas dentro dos presídios. Propor a aplicação de círculos restaurativos pode ampliar e consolidar os processos que acontecem na área jurídica.
CDHEP: O que mais deseja expressar sobre a Justiça Restaurativa?
Claudia: Creio que a JR, mais que uma alternativa à justiça punitiva, é uma resposta concreta à situação de violência e desestruturação social, implícita no sistema penitenciário. Já está comprovado que o sistema penal não tem dado resultados positivos. Pelo contrário, seus métodos geram mais violência e não servem para a reintegração social das pessoas privadas de liberdade.
Portanto, si queremos restaurar a harmonia social temos que começar transformando o sistema. É importante promover e aplicar a JR a nível pessoal, familiar e comunitário, incluindo também os funcionários que trabalham nos centros de reabilitação.
¹ No México, o julgamento oral é um novo tipo de sistema judicial que sobrepõe o sistema criminal inquisitivo. Chama-se Sistema Acusatório e implica uma característica que visa um avanço contra a corrupção e julgamentos precários.
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